"Os Memoráveis" | Review

março 11, 2024


Os Memoráveis, de Lídia Jorge, é um romance que invoca a histórica revolução dos cravos de 1974, mas é também uma reflexão atual sobre a liberdade, a resistência e a esperança. Tudo começa quando, em 2004, Ana Maria Machado, uma repórter portuguesa em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a revolução portuguesa de 1974. Embora apresente alguma resistência, Ana Maria acaba por aceitar o trabalho e regressa a Lisboa, onde, em conjunto com dois antigos colegas, visita e entrevista vários intervenientes e testemunhas do golpe de Estado. Esse percurso vai levá-los a observar o efeito da passagem do tempo sobre esses heróis e sobre a sociedade portuguesa em si, na sua grandeza e nas suas misérias. Paralelamente, decorre também a história do pai da protagonista, António Machado, que acaba por retratar em privado o destino que se abate sobre todos os outros. Todos vivem na Democracia, uma espécie de lugar de exílio, mas, um dia, todas as misérias serão esquecidas, quando se relatar o tempo dos memoráveis. (adaptado de Wook)


Enquanto Ana Maria e os seus dois companheiros, Margarida Lota e Miguel Ângelo, vão visitando alguns dos intervenientes do golpe de Estado, vão percebendo que, muitas vezes, os sonhos tornam-se realidade, mas nem sempre isso acaba por ser uma coisa boa, podendo mesmo tornar-se uma desilusão. Vamos percebendo as consequências que a revolução e o tempo tiveram sobre aquelas pessoas e também a forma como três pessoas que não viveram os tempos de revolução interpretam os acontecimentos e as coisas que vão vendo: sendo que, claramente, Ana Maria e Miguel Ângelo são muito mais pragmáticos e realistas, enquanto Margarida Lota é uma sonhadora que vê a beleza em tudo. E, ao mesmo tempo que tudo isto acontece e que vai conhecendo todas estas personagens históricas, Ana Maria tenta descobrir qual a melhor maneira de lidar com o pai, com quem tem uma relação fria e distante, mas que, na verdade, é em tudo semelhante àquelas pessoas que a filha tem entrevistado. Estes dois lados da história acabam por se cruzar, dando ainda mais sentido a tudo. 



Quando peguei neste livro, esperava um elogio ao 25 de abril de 1974, uma viagem no tempo até essa época - época que não vivi, mas que sempre me fascinou pela audácia daquelas pessoas em lutarem por um país diferente e melhor (talvez não fosse o país que temos hoje aquele que os capitães de abril imaginaram, mas continuo a achar que lhes devemos a eles muito daquilo que hoje temos e podemos fazer e dizer e que nos cabe a nós continuar a honrar o seu legado). Não é isso que Lídia Jorge faz: ela fala-nos muito mais sobre a sociedade atual do que da sociedade daquele tempo e fala sobre o povo português de hoje, sobre a forma como se olha para essa revolução, segundo uma visão de três pessoas que não viveram nessa época. Não é um livro sobre factos históricos, mas um romance que vai buscar um bocadinho desses factos e que nos faz refletir sobre o passado, o presente e o futuro. 


Nunca tinha lido nada de Lídia Jorge antes, mas fiquei fã. Acho que não é uma escrita fácil quando se começa, mas depois começamos a entrar no ritmo e torna-se apaixonante. Demorei um bocadinho a entrar no enredo, mas depois fiquei completamente agarrada à história. Adoro a forma quase poética com que ela descreve a cidade e a forma como consegue criar personagens realistas, com qualidades e defeitos como qualquer pessoa real. Essas personagens, tal como a escrita da autora, vão-nos conquistando aos poucos, há medida que vão revelando mais de si e da sua dimensão complexa. Isso foi das coisas que mais gostei neste livro: não é tudo preto no branco, as personagens são complexas, o contexto é complexo e mostra que nem tudo é tão perfeito como, por vezes, parece.  Há muito que Lídia Jorge deixa para que sejamos nós a refletir e a concluir e, embora eu nem sempre adore esse lado mais aberto dos livros, acho que neste livro isso faz todo o sentido e foi outra coisa de que gostei imenso.


Gostei mesmo muito desta leitura e recomendo este livro para todas as pessoas que gostam de livros que as deixem a pensar e para quem gosta de livros que, embora ficcionados, se baseiam em acontecimentos históricos reais. Acho que a autora conseguiu criar na perfeição o contraste entre duas gerações muito diferentes e a sua visão sobre o mesmo acontecimento e conseguiu mostrar como, muitas vezes, os heróis da nossa história acabam por passar de "bestiais a bestas".


Sem comentários:

Com tecnologia do Blogger.