Em setembro, li o Ensaio Sobre a Cegueira e partilhei convosco aqui a minha opiniĆ£o. Depois, decidi que tinha de fazer uma pausa para ler algo mais soft no entretanto, por isso fui reler Harry Potter e a CĆ¢mara dos Segredos, antes de me aventurar pelo Ensaio Sobre a Lucidez. Confesso que demorei mais tempo a ler do que o que queria, porque entretanto comeƧaram as aulas e com elas o meu tempo livre (e disposiĆ§Ć£o) diminuiu. Contudo, a cada pĆ”gina que ia passando, eu ia ficando mais e mais curiosa, ia-me embrenhando mais e mais no livro e ia gostando cada vez mais.
Eu sabia que, nĆ£o sendo propriamente uma sequela do Ensaio sobre a Cegueira, os dois livros estavam ligados e as suas histĆ³rias acabariam, de certo modo, por se fundir, e talvez por isso eu tenha comeƧado a ler o Ensaio Sobre a Lucidez com as expetativas bem lĆ” em cima. Tinha adorado o outro, foi um livro chocante (no bom sentido) e isso fez com que as minhas expetativas fossem muito, muito altas. No inĆcio, confesso que me desiludi um pouco, porque este segundo livro nĆ£o estava a ser exatamente aquilo que eu tinha imaginado. Contudo, Ć© um livro de Saramago e eu sei que os seus livros tĆŖm sempre truques na manga que nos vĆ£o surpreendendo, por isso fui continuando a ler e comecei a gostar mais e mais do livro. Agora que o terminei, nĆ£o consigo dizer de qual dos dois gostei mais. Acho que sĆ£o a combinaĆ§Ć£o perfeita!
Ensaio sobre a Lucidez, no Nobel da Literatura portuguĆŖs, JosĆ© Saramago, conta-nos a histĆ³ria de um paĆs e de uma cidade, dos quais nĆ£o sabemos o nome, no qual decorre um ato eleitoral. No final das contagens dos votos, verifica-se que 70% dos eleitores votou em branco. Perante tal anormalidade do ato eleitoral, as eleiƧƵes sĆ£o repetidas no domingo seguinte, obtendo-se uma taxa de votos brancos ainda maior, cerca de 80%.
Em vez de os governantes se reunirem para perceber quais os motivos por que a populaĆ§Ć£o decidiu votar em branco, agem de forma desconfiada e decidem desencadear uma operaĆ§Ć£o policial para descobrir qual o foco que estĆ” a originar aquela onda de votos em branco, assumindo diversas possibilidades para a origem dessa onda. Ć deste modo que se desencadeia um processo de rutura entre o poder polĆtico e o povo, chegando mesmo o governo a deixar a cidade e a implantar "estado de sĆtio".
Apesar de Saramago nos retratar um cenĆ”rio que parece utĆ³pico, as mensagens e as crĆticas subjacentes que ele nos deixa, que sĆ£o tĆ£o tĆpicas da sua escrita, sĆ£o bastante atuais. Vemos um governo que nĆ£o consegue perceber que a origem dos votos em branco Ć© o descontentamento da populaĆ§Ć£o para com os partidos e o regime. Vemos um governo que, ao invĆ©s de proteger e defender o seu povo, se vira contra ele, o acusa, o persegue e afronta. Vemos uma sociedade que Ć© totalmente negligenciada pelo seu governo, que usa todos os meios ao seu dispor para obter os fins que deseja, sem ter em conta as consequĆŖncias e os danos colaterais.
Embora, na minha opiniĆ£o, um pouco menos chocante e agressivo que o Ensaio Sobre a Lucidez, este Ć© um livro que tambĆ©m mexe com os nossos princĆpios, crenƧas e valores, que nos faz imaginar-nos naquele cenĆ”rio e pensar como algo assim poderia ser real. Mais uma vez, Saramago faz as suas crĆticas mordazes de forma assertiva e, ao mesmo tempo, subtil e deixa para nĆ³s a reflexĆ£o - uma caracterĆstica que, na minha opiniĆ£o, enaltece o seu brilhantismo.
Ć um livro que nĆ£o acaba bem (desculpem o spoiler), que nos deixa um nĆ³ no estĆ“mago e muitas perguntas na cabeƧa. Mais uma vez, Saramago tem este dom mĆ”gico de mexer com a nossa cabeƧa, com o nosso coraĆ§Ć£o, com as nossas emoƧƵes... Mexe um bocadinho em tudo aquilo que existe dentro de nĆ³s e consegue realmente mudar a nossa perspetiva sobre as coisas. Para mim, esta Ć© uma caracterĆstica fundamental de qualquer bom livro: ter o poder de marcar, de mudar algo dentro de nĆ³s, de se distinguir.
No
post dos
Favoritos de Outubro, deixei-vos uma citaĆ§Ć£o deste livro que adorei e, a acrescentar a essa, termino este
post com uma outra citaĆ§Ć£o que, de alguma forma, tĆ£o bem resume alguns dos momentos mais importantes deste livro:
Nascemos, e nesse momento Ʃ como se tivƩssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos, Quem assinou isto por mim.(JosƩ Saramago, Ensaio Sobre a Lucidez)
Sem comentƔrios: